A
recente polêmica sobre o(s) Projeto(s) de Lei “Escola sem Partido” cumpre uma
agenda política temerosa: 1) Tirar o foco “da maior crise da história do Brasil”
(que hoje, curiosamente, é midiatizada não mais como nacional, mas internacional);
2) Engendrar um programa político de extrema eficiência no controle e
formatação social.
Embora
seja uma discussão surreal, que se sustenta em argumentos e ataques
superficiais e profundamente ideologizados (embora defenda a desideologização
da escola), assume preponderância. Inclusive, com grande apoio de setores
numerosos da sociedade (ainda que não tenham, quase sempre, nenhuma ligação com
a educação).
Sustentado
num patológico e anacrônico anticomunismo (hoje com contorcionismos
linguísticos e desonestidade intelectual como a utilização deturpada do termo “Bolivarianismo”),
os PLs propõem regrar a didática professoral, o conteúdo tratado e a forma de
ensino. É algo que nem mesmo a Ditadura realizou, sequer o nazismo chegou tão
longe. A onda conservadora se mostra devastadora como um tsunami. Destroça
liberdades e direitos sob a égide de defender liberdades e direitos. É um
discurso sofista, retórico, sem conteúdo probalístico, mas eficiente num
contexto de maniqueísmos políticos.
A
discussão se mostra típica de contextos fascistizantes, nos quais a razão perde
sentido e a paixão é o motor social. Não há aprofundamento no tópico, apenas
passionalidade. Não é preciso provar nada, não é preciso argumento científico.
Movimentar palavras de ordem como PT, Cuba, Venezuela e Chê têm um poder maior
que qualquer elucubração teórica. A engenharia didática empreendida nos últimos
anos por setores chaves (Mídia, Igreja, Justiça) realizaram um papel muito mais
eficiente do que qualquer meia dúzia de professores que eventualmente
manifestem opinião de forma pouco mais contundente.
Discute-se
com veemência a desideologização da escola (sem sequer existir qualquer estudo
que comprove a ideologização), mas não há, em contrapartida, nenhuma menção ao
poder de formatação ideológica que a imprensa possui – sem dúvida, muito mais poderosa
que dos professores. Qualquer criança, antes de colocar pela primeira vez os
pés numa escola, já assistiu, em média, 5 MIL HORAS de TV. E, depois de
ingressarem na vida escolar, passam muito mais tempo em frente à programação
televisiva do que atentos à fala docente.
Um
dos motes mais usados para justificar esses PLs é “Meu filho, minhas regras”. É
tão inacreditável que esse lema adquira tanta credibilidade social, que chega a
ser constrangedor ter que contradita-lo. Brecht lamentava num contexto parecido
com o atual nos seguintes termos: “Que tempos são estes, em que precisamos
defender o óbvio?”.
A
escola não é a extensão do domicílio. Não é a continuidade da igreja. A escola
é espaço de produção e transmissão de conhecimento científico de todas as áreas
(Humanas, Exatas e Biológicas). É local de reflexão e crítica. É ambiente de
crescimento intelectual e expansão da capacidade mental. É lugar de convivência
com a diversidade, onde se trabalha a tolerância, a fraternidade, a compreensão
de que há inúmeras maneiras de se viver e se relacionar com o meio social.
Como
pode a Escola ser reprodutora das “regras” de cada uma das famílias que enviam
seus filhos para as salas de aula? Como fazer isso? Se um pai é racista, a
Escola deve ensinar o racismo? Se um pai é islâmico (ou qualquer outra
religião), o professor deve ensinar apenas essa religião para cada um dos
alunos? Se uma família tem escravos em suas terras, o professor deve justificar
isso ao estudante? Se o seio familiar acredita que há meritocracia, o professor
deve esvaziar esse conceito de toda problemática que carrega em si, e “ensinar”
que existe meritocracia? Se o pai defende a morte de homossexuais (ou agressão),
o professor deve ensinar técnicas de assassinato ou de lutas para atacar esse
grupo social? Se a família em sua fé acredita no criacionismo (todos, sem
dúvida, têm direito de escolher sua religião), a Escola deve abandonar a
ciência e fazer proselitismo religioso?
Não!
A Escola não é espaço de reprodução de regras e comportamentos de cada uma das
famílias. Não é reprodutora da ideologia dominante nos meios de imprensa. Ao
contrário do que o “Escola sem Partido” defende, a Escola faz o inverso do que
alegam. No ambiente escolar os estudantes são instados a refletir, a aprofundar
seus conhecimentos superficiais, a serem críticos. E exatamente por isso, cada
dia mais, os setores dominantes da sociedade não conseguem facilmente doutrinar
essas novas gerações. Não mais formatam esses jovens a se tornarem autômatos,
que aceitam a injustiça, a exploração, a desigualdade, o machismo, a violência etc.
Um
grito ecoa destes PLs, que são propostos por setores específicos da sociedade: pelo
direito de voltarem a doutrinar os jovens, sem qualquer contraditório. Querem
calar o pensamento científico-crítico, para que voltem a formar servos,
trabalhadores alienados, mulheres submissas, fiéis ciclópicos, homossexuais
envergonhados, negros cativos, índios folclóricos... Inventam uma “doutrinação na
Escola”, para poderem ser livres para doutrinar. Criam a “lógica” insustentável
de que ser crítico é ser comunista e esquerda, e portanto tudo podem fazer para
enDireitar a sociedade. Com um farsesco discurso da neutralidade, impõem sua
ideologia e doutrina com maestria.
Com
“Escola sem Partido” não se pode mais explicar como ocorreu a concentração
fundiária no país, e a desigualdade na distribuição das terras. Não se pode
mais falar do genocídio que foi a escravidão e suas consequências atuais. Não se
pode mais tratar da evolução biológica. Tampouco da naturalidade das relações
homossexuais (que não são escolha). Não se pode debater tolerância, diversidade
e respeito às diferenças. O “Escola sem Partido” é um novo projeto nazista, de extermínio
de tudo e qualquer coisa entendida nesta proposta nefasta, como prejudicial à um
único tipo de sociedade e sociabilidade. Com esses PLs, voltaremos a um tipo de
arianismo que engendrou o Holocausto. “Eu sou padrão, o resto é descartável”.
Sou
professor, e vejo diariamente que os estudantes não sãos papeis em branco.
Chegam à escola com valores e crenças enraizadas, provenientes da família,
igreja, mídia. Isto não é um problema. Pelo contrário, é mais do que fértil a
diversidade. Mas no ambiente escolar, no contato com a ciência, com a reflexão,
inevitavelmente, certos valores são revisitados pelo próprio discente. Não para
elimina-lo, mas para compreendê-lo. A Escola e a ciência existem para isso:
ajudar o ser humano a cada vez mais compreender o mundo em que vive, a evolução
biológica e social, as descobertas científicas. Os alunos chegam com o seu
mundo pessoal, num universo de outros tantos mundos, envoltos por conhecimentos
dos mais diversos. Sim, a escola vai e deve transformar o estudante, pois ninguém
que adquire um novo conhecimento volta para casa o mesmo. Heráclito já ensinou
isso há mais de 2 mil anos.
Na
Escola há docentes de esquerda, liberais, até mesmo comunistas. Sem esquecer
que há os fascistas e nazistas. Você encontra professores religiosos (maioria),
e até ateus convictos. Você que me lê aqui agora, pode até se surpreender, mas
os professores são seres humanos como você. Inclusive, tem suas próprias preferências.
Mas eles ensinam ciência e não doutrinas. A doutrinação ocorre na igreja, no
exército, na TV, nas empresas, nos livros de autoajuda, nos cursos de
empreendedorismo, na família, no trabalho etc. Na escola ensina-se a pensar com
as ferramentas que o conhecimento científico oferece.
Desculpe
quem não percebe o óbvio, mas a Escola não é detergente para ser neutra. Na
escola você não entra para criar certezas universais, mas para mergulhar em
dúvidas existenciais. Se há muitos que sustentam certezas sobre a necessidade
desta intragável “Escola sem Partido”, perdoem-me, mas eu estou cheio de
dúvidas.