quinta-feira, 21 de julho de 2016

"Escola sem Partido": oportunismo ou oportunidade?

                A recente polêmica sobre o(s) Projeto(s) de Lei “Escola sem Partido” cumpre uma agenda política temerosa: 1) Tirar o foco “da maior crise da história do Brasil” (que hoje, curiosamente, é midiatizada não mais como nacional, mas internacional); 2) Engendrar um programa político de extrema eficiência no controle e formatação social.
                Embora seja uma discussão surreal, que se sustenta em argumentos e ataques superficiais e profundamente ideologizados (embora defenda a desideologização da escola), assume preponderância. Inclusive, com grande apoio de setores numerosos da sociedade (ainda que não tenham, quase sempre, nenhuma ligação com a educação).
         Sustentado num patológico e anacrônico anticomunismo (hoje com contorcionismos linguísticos e desonestidade intelectual como a utilização deturpada do termo “Bolivarianismo”), os PLs propõem regrar a didática professoral, o conteúdo tratado e a forma de ensino. É algo que nem mesmo a Ditadura realizou, sequer o nazismo chegou tão longe. A onda conservadora se mostra devastadora como um tsunami. Destroça liberdades e direitos sob a égide de defender liberdades e direitos. É um discurso sofista, retórico, sem conteúdo probalístico, mas eficiente num contexto de maniqueísmos políticos.
                A discussão se mostra típica de contextos fascistizantes, nos quais a razão perde sentido e a paixão é o motor social. Não há aprofundamento no tópico, apenas passionalidade. Não é preciso provar nada, não é preciso argumento científico. Movimentar palavras de ordem como PT, Cuba, Venezuela e Chê têm um poder maior que qualquer elucubração teórica. A engenharia didática empreendida nos últimos anos por setores chaves (Mídia, Igreja, Justiça) realizaram um papel muito mais eficiente do que qualquer meia dúzia de professores que eventualmente manifestem opinião de forma pouco mais contundente.
                Discute-se com veemência a desideologização da escola (sem sequer existir qualquer estudo que comprove a ideologização), mas não há, em contrapartida, nenhuma menção ao poder de formatação ideológica que a imprensa possui – sem dúvida, muito mais poderosa que dos professores. Qualquer criança, antes de colocar pela primeira vez os pés numa escola, já assistiu, em média, 5 MIL HORAS de TV. E, depois de ingressarem na vida escolar, passam muito mais tempo em frente à programação televisiva do que atentos à fala docente.
                Um dos motes mais usados para justificar esses PLs é “Meu filho, minhas regras”. É tão inacreditável que esse lema adquira tanta credibilidade social, que chega a ser constrangedor ter que contradita-lo. Brecht lamentava num contexto parecido com o atual nos seguintes termos: “Que tempos são estes, em que precisamos defender o óbvio?”.
                A escola não é a extensão do domicílio. Não é a continuidade da igreja. A escola é espaço de produção e transmissão de conhecimento científico de todas as áreas (Humanas, Exatas e Biológicas). É local de reflexão e crítica. É ambiente de crescimento intelectual e expansão da capacidade mental. É lugar de convivência com a diversidade, onde se trabalha a tolerância, a fraternidade, a compreensão de que há inúmeras maneiras de se viver e se relacionar com o meio social.
                Como pode a Escola ser reprodutora das “regras” de cada uma das famílias que enviam seus filhos para as salas de aula? Como fazer isso? Se um pai é racista, a Escola deve ensinar o racismo? Se um pai é islâmico (ou qualquer outra religião), o professor deve ensinar apenas essa religião para cada um dos alunos? Se uma família tem escravos em suas terras, o professor deve justificar isso ao estudante? Se o seio familiar acredita que há meritocracia, o professor deve esvaziar esse conceito de toda problemática que carrega em si, e “ensinar” que existe meritocracia? Se o pai defende a morte de homossexuais (ou agressão), o professor deve ensinar técnicas de assassinato ou de lutas para atacar esse grupo social? Se a família em sua fé acredita no criacionismo (todos, sem dúvida, têm direito de escolher sua religião), a Escola deve abandonar a ciência e fazer proselitismo religioso?
                Não! A Escola não é espaço de reprodução de regras e comportamentos de cada uma das famílias. Não é reprodutora da ideologia dominante nos meios de imprensa. Ao contrário do que o “Escola sem Partido” defende, a Escola faz o inverso do que alegam. No ambiente escolar os estudantes são instados a refletir, a aprofundar seus conhecimentos superficiais, a serem críticos. E exatamente por isso, cada dia mais, os setores dominantes da sociedade não conseguem facilmente doutrinar essas novas gerações. Não mais formatam esses jovens a se tornarem autômatos, que aceitam a injustiça, a exploração, a desigualdade, o machismo, a violência etc.
                Um grito ecoa destes PLs, que são propostos por setores específicos da sociedade: pelo direito de voltarem a doutrinar os jovens, sem qualquer contraditório. Querem calar o pensamento científico-crítico, para que voltem a formar servos, trabalhadores alienados, mulheres submissas, fiéis ciclópicos, homossexuais envergonhados, negros cativos, índios folclóricos... Inventam uma “doutrinação na Escola”, para poderem ser livres para doutrinar. Criam a “lógica” insustentável de que ser crítico é ser comunista e esquerda, e portanto tudo podem fazer para enDireitar a sociedade. Com um farsesco discurso da neutralidade, impõem sua ideologia e doutrina com maestria.
                Com “Escola sem Partido” não se pode mais explicar como ocorreu a concentração fundiária no país, e a desigualdade na distribuição das terras. Não se pode mais falar do genocídio que foi a escravidão e suas consequências atuais. Não se pode mais tratar da evolução biológica. Tampouco da naturalidade das relações homossexuais (que não são escolha). Não se pode debater tolerância, diversidade e respeito às diferenças. O “Escola sem Partido” é um novo projeto nazista, de extermínio de tudo e qualquer coisa entendida nesta proposta nefasta, como prejudicial à um único tipo de sociedade e sociabilidade. Com esses PLs, voltaremos a um tipo de arianismo que engendrou o Holocausto. “Eu sou padrão, o resto é descartável”.
                Sou professor, e vejo diariamente que os estudantes não sãos papeis em branco. Chegam à escola com valores e crenças enraizadas, provenientes da família, igreja, mídia. Isto não é um problema. Pelo contrário, é mais do que fértil a diversidade. Mas no ambiente escolar, no contato com a ciência, com a reflexão, inevitavelmente, certos valores são revisitados pelo próprio discente. Não para elimina-lo, mas para compreendê-lo. A Escola e a ciência existem para isso: ajudar o ser humano a cada vez mais compreender o mundo em que vive, a evolução biológica e social, as descobertas científicas. Os alunos chegam com o seu mundo pessoal, num universo de outros tantos mundos, envoltos por conhecimentos dos mais diversos. Sim, a escola vai e deve transformar o estudante, pois ninguém que adquire um novo conhecimento volta para casa o mesmo. Heráclito já ensinou isso há mais de 2 mil anos.
                Na Escola há docentes de esquerda, liberais, até mesmo comunistas. Sem esquecer que há os fascistas e nazistas. Você encontra professores religiosos (maioria), e até ateus convictos. Você que me lê aqui agora, pode até se surpreender, mas os professores são seres humanos como você. Inclusive, tem suas próprias preferências. Mas eles ensinam ciência e não doutrinas. A doutrinação ocorre na igreja, no exército, na TV, nas empresas, nos livros de autoajuda, nos cursos de empreendedorismo, na família, no trabalho etc. Na escola ensina-se a pensar com as ferramentas que o conhecimento científico oferece.
                Desculpe quem não percebe o óbvio, mas a Escola não é detergente para ser neutra. Na escola você não entra para criar certezas universais, mas para mergulhar em dúvidas existenciais. Se há muitos que sustentam certezas sobre a necessidade desta intragável “Escola sem Partido”, perdoem-me, mas eu estou cheio de dúvidas.

                

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